Há outra palavra acerca da qual importa igualmente
que todos se entendam, por constituir um dos fechos de
abóbada de toda doutrina moral e ser objeto de inúmeras
controvérsias, à míngua de uma acepção bem determinada. É a palavra alma. A divergência de opiniões sobre a
natureza da alma provém da aplicação particular que cada
um dá a esse termo. Uma língua perfeita, em que
cada idéia fosse expressa por um termo próprio, evitaria
muitas discussões.
Segundo uns, a alma é o princípio da vida material
orgânica. Não tem existência própria e se aniquila com a
vida: é o materialismo puro. Neste sentido e por comparação, diz-se de um instrumento rachado, que nenhum som
mais emite: não tem alma. De conformidade com essa
opinião, a alma seria efeito e não causa.
Pensam outros que a alma é o princípio da inteligência, agente universal do qual cada ser absorve uma certa
porção. Segundo esses, não haveria em todo o Universo senão uma só alma a distribuir centelhas pelos diversos
seres inteligentes durante a vida destes, voltando cada centelha, mortos os seres, à fonte comum, a se confundir com
o todo, como os regatos e os rios voltam ao mar, donde
saíram. Essa opinião difere da precedente em que, nesta
hipótese, não há em nós somente matéria, subsistindo alguma coisa após a morte. Mas é quase como se nada subsistisse, porquanto, destituídos de individualidade, não mais
teríamos consciência de nós mesmos. Dentro desta opinião, a alma universal seria Deus, e cada ser um fragmento da divindade. Simples variante do panteísmo.
Segundo outros, finalmente, a alma é um ser moral,
distinto, independente da matéria e que conserva sua individualidade após a morte. Esta acepção é, sem contradita,
a mais geral, porque, debaixo de um nome ou de outro, a
idéia desse ser que sobrevive ao corpo se encontra, no estado de crença instintiva, não derivada de ensino, entre
todos os povos, qualquer que seja o grau de civilização de
cada um. Essa doutrina, segundo a qual a alma é causa e
não efeito, é a dos espiritualistas.
Sem discutir o mérito de tais opiniões e considerando
apenas o lado lingüístico da questão, diremos que estas
três aplicações do termo alma correspondem a três idéias
distintas, que demandariam, para serem expressas, três
vocábulos diferentes. Aquela palavra tem, pois, tríplice acepção e cada um, do seu ponto de vista, pode com razão defini-la como o faz. O mal está em a língua dispor somente de
uma palavra para exprimir três idéias. A fim de evitar todo
equívoco, seria necessário restringir-se a acepção do termo
alma a uma daquelas idéias. A escolha é indiferente; o que se faz mister é o entendimento entre todos, reduzindo-se o
problema a uma simples questão de convenção. Julgamos
mais lógico tomá-lo na sua acepção vulgar e por isso chamamos ALMA ao ser imaterial e individual que em nós reside e sobrevive ao corpo. Mesmo quando esse ser não existisse, não passasse de produto da imaginação, ainda assim
fora preciso um termo para designá-lo.
Na ausência de um vocábulo especial para tradução
de cada uma das duas outras idéias a que corresponde a
palavra alma, denominamos:
Princípio vital o princípio da vida material e orgânica,
qualquer que seja a fonte donde promane, princípio esse
comum a todos os seres vivos, desde as plantas até o homem. Pois que pode haver vida com exclusão da faculdade
de pensar, o princípio vital é coisa distinta e independente.
A palavra vitalidade não daria a mesma idéia. Para uns o
princípio vital é uma propriedade da matéria, um efeito que
se produz achando-se a matéria em dadas circunstâncias.
Segundo outros, e esta é a idéia mais comum, ele reside em
um fluido especial, universalmente espalhado e do qual cada
ser absorve e assimila uma parcela durante a vida, tal como
os corpos inertes absorvem a luz. Esse seria então o fluido
vital que, na opinião de alguns, em nada difere do
fluido elétrico animalizado, ao qual também se dão os
nomes de fluido magnético, fluido nervoso, etc.
Seja como for, um fato há que ninguém ousaria contestar, pois que resulta da observação: é que os seres orgânicos têm em si uma força íntima que determina o fenômeno da vida, enquanto essa força existe; que a vida material
é comum a todos os seres orgânicos e independe da inteligência e do pensamento; que a inteligência e o pensamento são faculdades próprias de certas espécies orgânicas; finalmente, que entre as espécies orgânicas dotadas de inteligência e de pensamento há uma dotada também de um
senso moral especial, que lhe dá incontestável superioridade sobre as outras: a espécie humana.
Concebe-se que, com uma acepção múltipla, o termo
alma não exclui o materialismo, nem o panteísmo. O próprio espiritualismo pode entender a alma de acordo com
uma ou outra das duas primeiras definições, sem prejuízo
do Ser imaterial distinto, a que então dará um nome qualquer. Assim, aquela palavra não representa uma opinião: é
um Proteu, que cada um ajeita a seu bel-prazer. Daí tantas
disputas intermináveis.
Evitar-se-ia igualmente a confusão, embora usando-se
do termo alma nos três casos, desde que se lhe acrescentasse um qualificativo especificando o ponto de vista em
que se está colocado, ou a aplicação que se faz da palavra.
Esta teria, então, um caráter genérico, designando, ao mesmo tempo, o princípio da vida material, o da inteligência e o
do senso moral, que se distinguiriam mediante um atributo, como os gases, por exemplo, que se distinguem aditando-se ao termo genérico as palavras hidrogênio, oxigênio, ou
azoto. Poder-se-ia, assim, dizer, e talvez fosse o melhor, a
alma vital — indicando o princípio da vida material; a alma
intelectual — o princípio da inteligência, e a alma espírita
— o da nossa individualidade após a morte. Como se vê,
tudo isto não passa de uma questão de palavras, mas questão muito importante quando se trata de nos fazermos entendidos. De conformidade com essa maneira de falar, a alma vital seria comum a todos os seres orgânicos: plantas, animais e homens; a alma intelectual pertenceria aos
animais e aos homens; e a alma espírita somente ao
homem.
Julgamos dever insistir nestas explicações pela razão
de que a doutrina espírita repousa naturalmente sobre a
existência, em nós, de um ser independente da matéria e
que sobrevive ao corpo. A palavra alma, tendo que aparecer
com freqüência no curso desta obra, cumpria fixássemos
bem o sentido que lhe atribuímos, a fim de evitarmos
qualquer engano.
Passemos agora ao objeto principal desta instrução
preliminar.
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